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Serenata


A casa do Timóteo, em Boca do Mar, nunca chegou a ser habitada. Nem por ele, que a ergueu, pedra sobre pedra, nas suas horas vagas da faina no mar, nem por Maria, a eleita para viverem nela, nem por mais nenhuma outra pessoa.

Somente as plantas e os animais, sem pejo, fizeram da construção térrea seu lar, transformando-a e tornando-a parte da natureza envolvente. O único e estreito acesso à casa foi também reconquistado pela mata selvagem, isolando-a completamente do resto da povoação.

Fruto da história por detrás desta casa, segundo uns amaldiçoada, segundo outros abençoada, Boca do Mar tornou-se um lugar de peregrinação para os apaixonados em busca da confirmação do seu afecto, através da história de amor do Timóteo e da Maria.

O que realmente aconteceu ninguém o consegue explicar até aos dias de hoje. O que ficou é que o amor de Timóteo e de Maria era demasiado genuíno, que tinha sido escrito nos Céus e que, por isso mesmo, não havia maneira de se ter concretizado na Terra.

Boca do Mar, naquele tempo, não era mais do que um aglomerado de casas térreas e modestas, construídas à medida que uma nova família era constituída, localizado em uma enseada protegida por rochas altas e escarpadas, que entravam pelo mar adentro.

Na pequena baía, o mar era tranquilo e de um tom esverdeado transparente, mostrando uma areia branca e fina que se estendia pela praia até um intenso arvoredo que galgava pelos rochedos circundantes acima. O acesso, por terra, era íngreme pelo meio das árvores e rochas, até ao topo dos penhascos.

Como todos os homens da sua comunidade, Timóteo nasceu com o fado para se tornar pescador. Mas, se havia quem se virasse para o mar por não ter outra hipótese, ele, desde sempre, não quis outra coisa. A sua vida era o mar e se fosse para pensar em morte, que fosse levado por ele até às suas profundezas.

De moto próprio, ainda nem tinha deixado os cueiros, observava os pescadores a prepararem a ida ao mar. Depois, ainda petiz, ajudava a arranjar as redes, a preparar as linhas de pesca, a levar os botes para o mar.

Fez o seu baptismo de mar ainda criança. O pai hesitou mas a firmeza de Timóteo deixou-o sem palavras para argumentar. Não se arrependeu, pois o filho tinha nascido para ser um verdadeiro homem do mar. Por isso, sem surpresas, mal chegou à adolescência, o pai, de bom grado, cedeu-lhe a capitania do bote da família.

O mar, na sua amplidão e profundidade, dava a Timóteo um sentido para a sua existência, apesar das permanentes dificuldades e das mortes não desejadas, mas quase sempre esperadas em ocasiões de intempérie. Não tinha hesitações, nem frustrações por desejar o que não se tem pois ele estava onde se sentia bem: no mar.

A comunidade de Boca do Mar respeitava-o muito, mas tomava-o por diferente do resto, pelos seus longos momentos de mutismo e de afastamento para ficar no alto-mar sozinho. Sem uma explicação plausível para o seu comportamento, começou-se a atribuir-lhe poderes especiais sobre o mar e sobre os peixes. Daí que os pescadores procurassem acompanhá-lo sempre pois era sinal que regressariam com os botes repletos de pescado.

Na sequência natural da vida e das coisas mundanas, e sem ele ter ainda pensado sobre isso, outras pessoas começaram a pensar por ele, procurando arranjar-lhe uma noiva. A mãe, em particular, pensava que ele tinha de encontrar uma companheira e começar a sua família. Ele já tinha dado provas de ser um pescador experimentado, por isso, capaz de sustentar a sua própria família.

As indirectas e visitas inesperadas de mães e suas filhas em idade casadoira foram aumentando, assustando Timóteo que começou a dormir no seu bote “Mar Profundo” e a evitar frequentar a casa dos pais. Para este filho do mar, era nas águas salgadas que estava bem, não sentindo a falta de algo ou de alguém, nem querendo as amarras e as obrigações de uma família.

Até que conheceu Maria, em uma das raras saídas de Boca do Mar, quando foi até um dos mercados das redondezas. Filha de camponeses, Maria era uma mulher do mundo rural. Tinha crescido longe do pescado, se bem que com as mesmas agruras do quotidiano, dependente da água que vinha do céu, em vez da água salgada do mar.

Tudo mudou na vida de Timóteo, a começar pelos sentimentos despertados pela camponesa. A mesma dedicação que tinha em relação ao mar tinha agora por Maria. A mesma felicidade que sentia quando estava sozinho no “Mar Profundo” em mar alto, sentia agora quando estava com ela. Queria estar com ela, sempre que não estivesse no mar.

Maria retribuiu o sentimento com a mesma dedicação com que trabalhava na lavoura todos os dias do ano. Havia coisas na vida que não podiam ser de outro jeito e ela pressentia que esse amor era superior a qualquer outra vontade. Nos braços de Timóteo, sentia-se abençoada com a possibilidade de uma vida plena a dois entre a mulher do campo e o homem do mar.

As pessoas de Boca do Mar ficaram surpresas pois Maria tinha uma natureza oposta da de Timóteo. Conversadora nata e de trato fácil, atraía as pessoas para a sua beira. As suas gargalhadas eram o sinal mais evidente da sua maneira de ser alegre, extrovertida e espontânea.

Mas o que realmente cativara Timóteo foram o seu olhar angelical e o timbre de voz melodioso. Os sentimentos que moravam nela eram genuínos, por isso, não se sentia saturado pelo seu falar constante, nem as gargalhadas não lhe feriam os ouvidos, pelo contrário, eram um deleite para ele.

Sentados na areia, encostados ao “Mar Profundo”, faziam planos para a boda e sobre a família que iriam começar. Maria falava e ele ia anuindo com a cabeça, vislumbrando-se, coisa rara, um sorriso discreto nos lábios quase sempre cerrados do pescador. O olhar dos dois amantes era idêntico, irradiando alegria e paz.

Timóteo escolheu construir a casa deles em uma elevação, sobranceira à povoação, a meio caminho entre as casas de Boca do Mar e o acesso ao topo das rochas. Destacada e acima das outras casas, Timóteo disse à Maria “Serás a primeira mulher a ver o seu homem a regressar a casa”.

As bodas foram marcadas para quando a casa estivesse pronta e ela tivesse o vestido de noiva e o enxoval prontos. Os amantes entregaram-se com dedicação, sem nenhum cansaço, ao seu labor, prescindindo de ajuda tanto na construção da casa como na feitura do vestido e do enxoval. Esse mundo novo era só deles.

Na madrugada do dia da boda, Timóteo foi ao mar com os seus companheiros. Tinha fé em conseguir arranjar um excelente pescado para a festa que iria reunir duas comunidades distintas. Queria que o momento fosse inesquecível.

Mas, pela primeira vez na vida dele, sentiu-se apreensivo ao chegarem ao alto-mar, transmitindo insegurança aos outros homens. Algo não estava bem. O mar estava parado demais, como se estivesse morto. Talvez ele até preferisse a intempérie, pois sempre dar-lhes-ia luta.

Enquanto isso, Maria dava os últimos arranjos na futura casa do casal, preparando-se para a nova vida de mulher de pescador. Porém, antes de se retirar para a casa dos futuros sogros para descansar e esperar depois na praia pelo regresso dos pescadores, decidiu vestir o seu vestido de noiva uma última vez antes do grande momento em frente a Timóteo. Sentiu-se demasiado emocionada perante tamanha felicidade que quase sucumbiu. Cambaleou até à cama para repousar um pouco. Deitou-se de costas, colocou as mãos repousadas uma sobre a outra no peito, fechou os olhos e não mais os abriu.

No mar, Timóteo sentiu um forte aperto no peito, deixando-o com a respiração suspensa quase que sem ar. Impacientou-se e deu ordens para regressarem, mesmo sem terem conseguido pescar nada nessa madrugada. Todos permaneceram silenciosos no caminho de regresso a Boca do Mar, pois nunca tinham visto nada assim. Algo estranho devia estar a passar-se e não era um bom augúrio para a boda.

Assim que entraram na enseada, Timóteo percebeu a comoção reinante na praia e saltou para a água para conseguir chegar mais depressa à terra seca. As mulheres gritavam e ele sem nada compreender mas pressentindo a desgraça, dirigiu-se a correr até à casa que construíra para a Maria, para ele e para os filhos que iriam ter.

Chegado lá, ficou estarrecido ao ver a Maria, imóvel, deitada na cama. Ajoelhou-se à beira da cama e chorou copiosamente. Até que deu um longo e profundo grito de dor e ficou prostrado no chão. Maria parecia um anjo, dando a impressão que estava a dormir tranquilamente e que iria acordar a qualquer momento e falar no seu característico timbre melódico.

Em surdina, começou-se então a manifestar-se na comunidade o que muitos pensavam mas que não se tinham atrevido a dizer ainda. Que Maria era uma estranha a Boca do Mar e às gentes do mar. Que ela desafiara os deuses do Mar ao disputar o amor de Timóteo. Que não devia ter desviado Timóteo da sua missão de liderar os homens no mar. Outros diziam que a sua alegria e bondade eram de um autêntico anjo e que, por isso, nunca iria durar muito na Terra.

Timóteo nunca mais entrou no mar, passando os dias sentado à porta da casa térrea a olhar para a pequena baía e suas rochas circundantes e movimentando os braços e dedos das mãos como se estivesse a tocar um violão. À noite, recolhia para o “Mar Profundo”, encalhado para sempre na areia da praia.

Tomado por louco, mas acarinhado pela comunidade, nunca lhe faltou nada até ao momento da sua morte, já velho e cansado de dedilhar o seu violão. Reza agora a lenda que quando o vento sopra do mar e entra pelas frestas da casa do Timóteo, somente os verdadeiros amantes conseguem ouvir a serenata que ele dedilhava todos os dias para a Maria acordar e darem início à boda.

Os amantes mais afoitos asseguram que não só conseguiram ouvir a serenata como também, por se terem aventurado pela mata até à casa, tinham visto Timóteo e Maria a dançarem, felizes, ao compasso dessa melodia. A camponesa de vestido de noiva e o pescador com as suas roupas do mar do dia da boda. 

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