Havia. Digo havia porque já não existe mais. Havia, depois de se subir até ao
cume da montanha sagrada, contorná-la em direcção ao sol poente, pelas rochas
fragosas sobranceiras ao mar, escondido em um lugar recôndito, um novelo de
oiro.
Diziam. Diziam que tinham ouvido de pessoas que, por sua vez, tinham ouvido de
outras pessoas sobre esse novelo de oiro. O certo é que quem o dizia nunca o
tinha visto. Mas eu garanto-vos que o novelo de oiro foi real pois conheço
muito bem a única pessoa que o viu, tocou e o recebeu para si.
Falavam. Falavam e sonhavam com os seus poderes, segredos e virtudes, como se de
uma panaceia se tratasse para todos os seus males. Assim, vingou o mito e procurava-se
o novelo de oiro nos penhascos inacessíveis da montanha sagrada.
Vaticinavam. Vaticinavam grandiosidades para a pessoa que conseguisse ver, tocar e controlar
o novelo de oiro. Talvez por isso tantas pessoas o perseguissem, mesmo não
sabendo bem o que essas grandiosidades significavam. Mas eu já vos garanti que
o novelo existiu mesmo.
Declaravam. Declaravam com uma segurança inabalável que quem conseguira chegar perto
do novelo e se atrevera a tocar-lhe nunca mais fora vista para poder contar a
sua história. “O que acontece quando se lava as mãos sujas de terra na água
límpida? Não eram dignas do novelo de oiro.”, concluíam.
Perseguiam. Perseguiam, todos os dias, uma visão de sucesso inigualável projectada
por outros, em vez de, em abono da verdade, se preocuparem com as suas
verdadeiras necessidades, com a resposta para os seus próprios dilemas e
anseios.
Subiam. Subiam, sem dificuldades, a montanha sagrada, chegando ao cume imbuídos
de uma confiança cega, iludindo-se que o novelo de oiro, ou o que quer que
fosse que estivesse escondido na montanha sagrada, iria alimentar-lhes o ego e
o estômago.
Desciam. Desciam em direcção ao sol poente pela encosta sobranceira ao mar. E aqui
começava a dificuldade e a subsequente derrota desses perseguidores de
quimeras, pois a verdade é que o novelo de oiro não lhes pertencia. Cegos de
ilusão, não reflectiam que buscavam o inacessível para eles.
Perscrutavam. Em vão, perscrutavam, nas rochas fragosas, pelo lugar recôndito onde o
novelo de oiro se encontrava escondido e que só se revelava naquele fragmento
de instante em que o dia some e a noite chega e o brilho dourado fazia-se
notar.
Falhavam. Falhavam todos e depois ficavam somente com o breu da noite por companhia.
Habituados a seguir as ideias dos outros, tomavam a solução mais fácil e segura:
mergulhavam no mar tranquilo. Volto a repetir: a solução mais fácil e segura para
eles era deixarem-se cair ao mar. Porquê?
Havia. Porque havia um pescador. Havia não. Há um pescador que, se hoje pesca pelo
deleite de o fazer, na altura fazia-o por obrigação. Acontece que, para esse
pescador, o melhor sítio para pescar era exactamente onde caíam as pessoas que
não tinham conseguido identificar a chama doirada. E eram todas.
Pescava. Pescava, todas as noites, mais pessoas que peixes, que se concentravam em
cardume no mar por debaixo das escarpas da montanha sagrada e sumiam ao raiar
do dia.
Perturbado. Perturbado e frustrado, o pescador via a sua vida a ser constantemente
atrapalhada por estas pessoas que se lhe atravessavam no caminho e o obrigavam
a refazer os planos para que elas não morressem afogadas.
Impotente. Até que uma noite, sentindo-se impotente por ter resgatado tantas pessoas,
não teve outra solução senão regressar a terra firme para evitar que o barco se
afundasse com eles todos.
Revoltado. Revoltado e injustiçado, regressou à faina, questionando-se: Como tratar
de si, das suas necessidades, dos seus dilemas e anseios, se estava constantemente
a cuidar para que os outros não morressem afogados?
Resmungava. Resmungava em voz alta, sozinho, no mar tranquilo sob a lua cheia: “Mas o
que posso fazer? Esta é a melhor água e o melhor peixe é só à noite! Eles são
cada vez mais todas as noites! E eu já estou a chegar ao meu limite... Não
consigo cuidar dos outros se não conseguir cuidar de mim primeiro.”
Tentou. Tentou pescar novamente mas o sol começou a despontar e os peixes a se
esconderem. Porém, como que reflectindo a luz do sol que surgia lá no alto do
céu, no mar um brilho foi aumentando de intensidade à volta do seu barco e
prendeu a sua atenção.
Hipnotizado. Hipnotizado pela luz diáfana e, sem pensar duas vezes, mergulhou em
direcção a ela. Seguiu-a, nadando por túneis rochosos até uma caverna dentro da
montanha sagrada. Assim que o pescador assomou a cabeça fora da água, a luz
desapareceu.
Sentiu. Sentiu-se bem. Sentiu-se tranquilo. Sentiu-se em paz. Longe de tudo o que
lhe estava a causar sobressaltos. Só, mas não em solidão, em um lugar que,
pelos vistos, somente ele tinha tido acesso até então: uma gruta escondida na
montanha sagrada. Saiu da água para explorar a caverna quando ouviu:
- Coração de
pescador, porque pescas tu? Porque é uma obrigação para ti?
Viu. Viu, ao longe, uma luz doirada, de um brilho tão intenso que lhe deixou
momentaneamente encandeado. À medida que a luz, flutuando, se acercava dele, o
pescador compreendeu que era o novelo de oiro.
Fixou. Intrigado e encantado, fixou o olhar no novelo de oiro e reparou que ele
era formado por vários pedaços de fio que surgiam de um lado e sumiam de outro,
em um movimento perpétuo.
- Quem está aí?
Quem me perguntou? – disse, em voz alta, sem afastar os olhos do novelo de
oiro.
- Sou eu. – a
resposta veio do novelo.
- Eu? E quem és
tu? – respondeu o pescador.
- Sou a tua alma,
coração de pescador. – respondeu o novelo de oiro, brilhando ainda mais quando
disse isso.
Reflectiu. O pescador reflectiu nos vários caminhos e encruzilhadas da sua vida, nas
várias oportunidades perdidas e ganhas ao longo da sua existência, nos vários
dilemas enfrentados, nas várias decisões adiadas, ao olhar atentamente para o
novelo e os seus pedaços de fios em movimento perpétuo, repleto de inícios e
fins de linha.
- Como é que a
minha alma está aí? – questionou, começando a sentir-se hesitante e defensivo. -
Quem és tu? Tu que me causas prejuízos todas as noites? As pessoas que te
perseguem incessantemente e que caem ao mar umas atrás das outras, dificultando
o meu labor?
- Sou a tua alma.
Rejeitaste-me há muito tempo e já nem me reconheces. Por isso, é que os outros
falham todos os dias. Não podem chegar a mim, por mais que tentem. E transferem
para ti a responsabilidade da vida deles, pois és tu quem fica a tomar conta
deles.
Pensava. O pescador só pensava: Como é que “aquilo” podia ser uma alma? A sua
alma?!
- Como já não me
consegues ver, nem acreditas que eu possa existir, tive de te ir buscar.
Responde-me agora coração de pescador, porque pescas tu? Porque tudo se tornou
uma obrigação para ti? – prosseguiu o novelo de oiro.
Mergulhou. Com um gesto brusco, mergulhou nas águas e desapareceu da gruta. Não
contou a ninguém a sua experiência, não fossem tomá-lo por louco por não se ter
apoderado do novelo de oiro.
Apreendeu. Após o choque inicial, apreendeu que deixara de pensar em si, na sua alma
e sentiu-se impotente perante si próprio. Não mais foi o mesmo. O seu coração
tornou-se entorpecido. Uma bomba que se limitava a injectar a energia
suficiente para que se conseguisse estar vivo, mas sem palpitar ou vibrar com a
vida e a emoção. Parecia que se extinguia aos poucos, por dentro.
Desistiu. Até que em uma dada noite, desistiu da faina porque não havia peixe para
pescar e, estranhamente, não caía ninguém ao mar. Puxou a rede de volta para o
barco, trazendo agora apenas o que parecia ser uma bola muito suja e danificada.
Percebeu. Percebeu que era o novelo de oiro, ao tirar a bola da rede. Mas que já
não brilhava, nem parecia ter vida própria. Estaria então explicado porque não
tinha aparecido mais ninguém? Deixara de haver uma chama para alimentar os
sonhos dos outros.
Desfaleceu. Desfaleceu, ao sentir uma enorme fraqueza a tomar conta dele. Não sabia
explicar se sonhava ou não mas pareceu-lhe ouvir as mesmas perguntas de
outrora: “Coração de pescador, porque pescas tu? Porque tudo se tornou uma
obrigação para ti?” Viu-se nu perante um leão majestoso e digno, que lhe falou
assim:
- Pode um coração
de pescador ser também um coração de leão?
Compreendeu. O pescador compreendeu finalmente quem ele era e respondeu:
- Pode. Se
permitir que o meu coração de leão me lidere, com a paciência do meu coração de
pescador para me servir, não para servir os outros.
Correu. O leão correu em direcção ao pescador, como se o fosse devorar e saltou
em direcção a ele. Despertou e tinha as mãos no ar como se estivesse a defender-se
contra a investida do leão. O novelo de oiro voltara a brilhar e rodopiava leve
e ligeiro de volta do pescador.
Deixou. O pescador, coração de leão, deixou de pescar por obrigação. Hoje, pesca
por prazer no mesmo local e em outros que nem sabia sequer da sua existência. Tornou-se
senhor do seu próprio reino, não mais o escravo dos outros.
Sei. Como sei eu disto tudo? Porque sou o novelo de oiro e moro agora no
coração de leão do pescador.
Moral da história
Cada qual que trilhe o seu caminho sem arrastar
negativamente os outros para os seus dilemas.
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